Polícia pós-moderna prolifera velhos problemas raciais

Diariamente morre um jovem nos bairros periféricos de Salvador sem uma autoria, sem uma explicação plausível. Quase sempre é a mesma história, tiroteio seguido de morte. Quando não afirmam ter encontrado a vítima já morta ou agonizando e a viatura da polícia aparece para prestar socorro. SOCORRO – pede a juventude negra do século XXI. A quem recorrer? À polícia? Às outras autoridades? A São Jorge? A Deus? Como driblar as adversidades do dia-a-dia que potencialmente vitimiza mais negros de classes desfavorecidas do que os brancos? Segundo a pesquisa desenvolvida por Júlio Jacobo Waiselfisz o “Mapa da Violência 2010 – Anatomia dos Homicídios no Brasil”, que relaciona a quantidade de homicídios com fatores sociais e também identifica o gênero e a etnia “em dois anos foram mortos 59.896 negros e 29.892 brancos. A diferença maior entre os grupos envolve pessoas com idades de 10 a 24 anos.” O estudo constata que a morte desses jovens é provocada por indivíduos de mesma situação social de risco, e que muitas vezes são policiais. “No Nordeste a disparidade dentre os grupos é a maior do Brasil: são 10 negros mortos para um branco”.

As Rondas Especiais (Rondesp) é a polícia mais citada nos textos dos jornais locais, o que me levou a fazer uma analogia com o livro “Rota 66: a história da polícia que mata”, do jornalista Caco Barcellos sobre as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) e os casos de assassinatos descritos em seu texto no qual, para a polícia, o suspeito já é considerado criminoso e culpado. Publicação elaborada através de uma pesquisa do jornalista por mais de vinte anos, desenha um perfil dos jovens exterminados pela polícia da época: pardos e negros, moradores de bairros desassistidos pelas políticas públicas, jovens entre 14 e 26 anos, que apresentaram resistência a prisão e com troca de tiros. A coincidência dos fatos descritos por Barcellos e o que acontece nos subúrbios de Salvador atualmente é de se pensar porque os criminosos não representam a maioria entre as pessoas que aparecem mortas pelos policiais militares no caso da ROTA.

O livro trata também do racismo não declarado oficialmente, o sorrateiro, o silencioso que vem de tempos pós-abolição da escravatura e que muitos negros sofrem diariamente. Aquilo que não é dito, mas feito descaradamente. O fato de serem “pretos”, pobres e moradores das periferias condiciona o julgamento de bandido, traficante, ladrão… Culpado. Sem direito a voz ou defesa. A maioria das pessoas envolvidas nos homicídios nas últimas semanas na região metropolitana ainda não foram identificadas, só informaram que moram nos bairros “famosos” pelo abandono, pobreza, violência e descaso, e que são jovens em situação de risco. Mas por que não foram identificados? Será que todos esses jovens não portavam seus documentos? Nem tinham parentes? Alguém que pudesse identificá-los, derramar uma lágrima por essas pessoas? Seriam todos bandidos? Ou pode ter a polícia alterado o local do crime? Esses jovens sem nome, sem personificação serão estátísticas no final deste mês e voltarão em nossas lembranças no final do ano com o balancete de mortes em 2010.

Não sabemos se são realmente inocentes ou culpados, mesmo porque a apresentação dos fatos quase sempre está sem explicações detalhadas, ou mesmo as considerações básicas. No período em o que o PFL (atual DEM) monopolizava a política baiana, a violência era tratada como fenômeno mundial. Logo o que podiam fazer os governantes? Sai governo entra outro, atuais PMDB partido do atual Prefeito João Henrique e PT partido do governador Jaques Wagner, a culpa agora é do crack. Afinal o governo tem que culpar algo ou alguém que não seja ele mesmo. Sabemos que o tráfico está causando muitos homicídios em Salvador, mas será ele responsável solitário dessas mortes? Como podemos quantificar a atuação da Polícia Civil, que age sem farda? Até onde vai a ética de nossos policiais que ganham R$ 1.978,51 para sair de suas casas e não saber se voltam em uma escala 12 horas de trabalho x 36 horas de folga? Como podemos presumir que mesmo com esse novo treinamento financiado pelo governo do estado, que visa a qualificação dos agentes, vai diminuir a quantidade de mortes de jovens se em 2009 a polícia só podia contar com 180 pistolas não-letais? A contratação de trinta mil policiais não terá o efeito desejado se a polícia não estiver próxima à comunidade, se for considerada tão marginal quanto aqueles que comercializam drogas, se não estabelecer a ordem social combatendo a criminalidade e se não mudar a imagem da corporação há muito manchada por policiais corruptos. É comum as pessoas que vivem em bairros periféricos terem medo da polícia, simplesmente pela forma de sua abordagem austera.

Esse pensamento de que o negro sempre é mais propenso ao crime também povoa a mente dos policiais, que dão prioridade em averiguar aqueles que consideram suspeitos. Outro dado apresentado na pesquisa de Waiselfisz sugere diversas razões para esses homicídios: a privatização da segurança que serve de divisor geográfico-social, pois impossibilita a comunicação entre as classes aprofundando o abismo que divide aqueles que podem pagar sua segurança – colocando cerca elétrica, comprando um carro com travas automáticas, morando em condomínios fechados com inúmeros seguranças – e aqueles que colocam o peito como blindagem e voltam do trabalho onze horas, meia noite em bairros que nem a polícia se atreve a patrulhar nesse horário, sua segurança fica a cargo de Deus e dos òrisàs. Porque se os policiais aparecem é pra procurar culpado metendo o pé na porta para entrar e dando tiro em criminoso e inocente. Quando dá tudo “errado” passa a ser incompetência da somente da polícia, que não é de fato.

Independente de quem seja o responsável pela autoria da caça aos jovens negros – militares ou governantes – vemos as viaturas da Polícia Militar e os “rabecões” do Instituto Médico Legal fazendo o papel de navio negreiro do século XXI. Essa falácia de uma viatura estava prestando socorro não convence. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) é que tem o dever de prestar atendimento médico. Uma viatura que demora mais de uma hora e meia para chegar a um hospital para mim não está priorizando salvar a vida desse indivíduo. “Reaja ou será morto, reaja ou será morta” mais que um apelo, um movimento que alerta aqueles poucos desavisados que podem estar “na mira” e ainda não sabem os que são o alvo daqueles que deveriam protegê-los.


Iara Thalita Adans Oliveira (thallyadans@hotmail.com)

Ilustração: Jamile Coelho

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